A roda a rodar

Você sabe como é, basta um tempo quieto, sozinho, pensando em nada, que a gente começa a pensar em tudo. Pensa na vida que deveria ter vivido, mas não conseguiu; no carro que era pra ter comprado, mas que o financiamento não foi aceito; da casa que tanto sonhou, mas que não tinha a documentação necessária. Uma árvore, um livro que não foi comprado, um abraço contigo em meio à vergonha. Tanta coisa cabe em meio a poucos segundos, que fica difícil controlar os sentimentos que afloram.

Foi assim agora há pouco. Parei pra tomar um café e fiquei pensando em como a gente não se decide logo, como temos medo das coisas, temos educação por medo e não por respeito. Como nossos sentimentos são confusos e díspares. Tentamos demais fazer a coisa certa, mas invariavelmente fazemos a coisa errada. Mais ou menos aquilo que Horácio disse: "Quando os tolos querem evitar um erro, geralmente fazem o oposto".

Eu tenho pensado muito sobre o erro das decisões. Há um tempo na vida em que tudo é permitido, inclusive o erro. A gente come e pode engordar, bebe e fica bêbado, corre e se machuca sem neura.Deita-se com não deveria, beija as bocas que menos deseja, faz de um tudo um pouco só por fazer, sem responsabilidade alguma consigo mesmo e com segundos, terceiros.

Mas não é assim. Todas as nossas ações têm reações igualmente fortes à primeira. E não tenho a presunção de demonstrar aqui como a vida pode ser maniqueísta, muito pelo contrário. É que justamente por sermos esse amontoado de tudo e de todos, que há que se ter um pouco de tato com as coisas. Com as coisas e com as pessoas. Com as situações, relações, amores. Há uma falsa onda de sensatez, que nada mais é do que grosseria. Falar tudo, sem tato algum, não é sinceridade, é maledicência. É usar a intimidade que se tem com a pessoa pra tripudiar, pisar naquilo que incomoda.

Nós nos revestimos diariamente de cascas e invólucros resistentes o suficiente pra aguentar o dia-a-dia. Andamos pelas ruas, trabalhamos, vamos fazer nossas compras e no final do dia, fechamos a porta de casa com a consciência limpa de que tudo deu certo e nada foi descoberto. Mas por que, então, desconstruir a armadura do outro, que tão calculadamente a teceu pra poder viver a vida, também? Por que se valer da intimidade e do afeto pra poder desmascarar, humilhar, por em pauta aquilo que deve ser mantido quieto?

Talvez tenhamos a sensação de que "resolvendo" os problemas dos outros, a gente consiga resolver os nossos próprios. Mas é pura balela, a gente só resolve aquilo com o que convive. Tem que sofrer pra entender a dor e a profundidade; tem que conviver pra saber se vale a pena ou se não. Porque às vezes não vale, e o que resta é deixar rolar, fingir não ver.

É sempre bom desconstruir esses monstros que nos afligem e nos matam diariamente. São amores que perdemos, empregos que não conquistamos, promoções que recusamos por medo e insegurança, viagens que desistimos, um bocado de coisa que poderia agregar. Mas mesmo rompendo barreiras, é sempre bom manter algumas. 

A barreira do respeito é essencial: mantê-la pode trazer uma intimidade muito maior do que essa superficial construída de forma fictícia pelas relações tão instantâneas. A barreira do amor também é imprescindível: só consegue respeitar alguém quem ama, e nem precisa ser amor rasgado, de homem pra mulher - ou de homem pra homem -, pode ser amor ao próximo, amor ao ser humano que está à nossa frente e que merece, enfim, respeito.

Acho que é tempo de voltarmos a prestar atenção nas pequenas coisas, nos detalhes mais distintos que as relações podem suscitar. Boas conversas, pessoas gentis, lugares agradáveis, amores benditos. É tempo de criar coragem e fazer as coisas acontecerem e não deixarmos que nossas vidas sejam decididas por outras pessoas. É tempo de valorizar boas amizades e dispensar relações convenientes, que pouco agregam e fazem muito mal. É tempo de parar um tempo pra pensar e não ter que ficar conjecturando todas essas pequenas questões, mas sim grandes questões, como paz, amor, saúde e fé - que pode ser exercida de tantas formas.

É tempo de parar de consertar as coisas e deixarmos que a vida nos conserte, nos dê a mão e nos guie. No fundo, somos crianças precisando de atenção. Mas crescemos, e olhar para os lados ainda é válido.

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