Feridas abertas

Minhas feridas abertas
tão certas e dispersas como o céu da manhã
sangram o seu rito matinal
a fim de me lembrar porque estão lá.
Abrem-se com o sol a nascer
e o galo cantando o seu cocóricó
sangram pouco a pouco
para apanhar ritmo
e lá pelas dez horas
hora que o café já fora tomado
e o queijo caseiro já fora comigo
elas sangram torrencialmente.
São bonitas quando olhadas de fora.
Sem a casca, que normalmente as protege,
tem um tom rosado no meio
e em volta, no roxo na pele ainda viva,
é onde doem. 
Doem imensuravelmente.
Estão há quanto tempo assim? 
Não sei dizer.
Deixei de contar os dias depois que tudo mudou
e as dores começaram.
São resultados, consequências.
A sombra da morte que pairou aqui
junto da lascívia nunca consumada
e o desajeito das relações.
Amores inacabados
perdidos e enterrados.
As feridas pulsam e vez ou outra, pioram:
porque as mantive
(a dor lembrada é a saudade mantida).
Com o fim do dia,
quando os homens voltam à casa
cansados do dia
deitam-se na cama e tiram as botinas;
quando a casa fica vazia 
ressoa o barulho do ronco de quem se cansou
as feridas criam asas, vida própria
e a sala de casa torna-se um cinema.
Ali, sentado no sofá, em frente à tevê
assisto a tudo o que elas me mostram.
Do machucado da pele pulam as armadilhas da vida
o inacabado, o retrato
a punheta
um sorriso lindo de viver
e a morte.
As janelas embaçam quando o tinhoso passa
e eu tremo só de pensar que um dia ele ainda me leva.
Com o sono, o cinema se desfaz
e a sala esvazia.
Os fantasmas encaixotados 
- entre minha cabeça e as feridas abertas -
descansam o seu sono de morte.
E eu, como se nada doesse
durmo o sono de quem nunca descansa.

Um comentário:

  1. Eu gosto de dor assim, que vira poesia bonita, não o mimimi exagerado que insistem em exprimir. Não tem beleza na dor, embora a gente queira insistir que sim... Acredito que é gente ferida que aprende a ser feliz. E que nunca nos falte os delírios e as pequenezas que nos salvam.

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