Reza e reparo

O menino olhava atento
reparando a cena.
O pai batia na mãe.
Erguia a mão
e, depois de ter pego força,
esbofeteava a cara da mulher.
Ele tinha seus seis anos,
pequeno, olhinhos grandes,
pretos feito jabuticaba.
Tremia encostado na parede
e pedia ao papai do céu
que aquilo parasse.
Havia aprendido a rezar na escola.
Rezavam antes de comer,
davam as mãozinhas
e agradeciam ao senhor
pela benção de ter o que comer.
Ali, parado, sem conseguir ajudar,
ele pedia mais uma benção.
Que o papai do céu,
aquele que tanto lhe dava de comer,
fizesse com que a mão de seu pai caísse.
Chorava baixo -
se chorasse alto, apanhava também -
fechava os olhinhos e rezava
infinitamente,
até que em algum momento
sua mãe conseguia se livrar do marido
e o pegava no colo.
"Já passou, fio", ela o consolava
e ele chorava, dessa vez alto,
com o pai longe.
Ali nascera seu melhor hábito:
o reparo.
Zelava e cuidava,
olhava atentamente as pessoas,
os lugares.
O ambiente, mesmo que auspicioso,
sempre pedia mais atenção.
Em algumas noites, quando chovia,
ele acordava de pesadelos
em que seu pai era o algoz.
Neles, voltava a ser menino
e via a mãe apanhando,
mais uma vez, do pai.
A surra havia piorado,
ele a atacava com um pedaço de madeira.
Ali, naquele espaço
que era e não era,
ele criava forças e defendia a mãe.
Grudava no pescoço do pai
e prendia suas mãozinhas,
ainda pequenas, em volta do pescoço do velho.
No sonho, as mãos cresciam
e tomavam a forma de mãos de homem.
Grandes, peludas,
elas conseguiam prender a respiração do pai
até que ela deixasse de existir por completo.
Ele salvava a mãe
e sentia-se aliviado
até que acordava.
A mulher, ao lado, já acostumada,
não dava atenção.
Juntava as mãos,
agora adultas
grossas do trabalho,
e rezava como aprendera na escola.
Agradecia pela benção de ter comida,
família e pedia perdão
por nunca ter tido coragem...
Ah, se ele tivesse tido
a sua reza seria diferente, hoje.

Nenhum comentário:

Postar um comentário