Homem II

Saio à rua e deixo minha vida dentro de casa.
Cá dentro sou o cara decente,
bem vestido, que se comporta.
Um exemplo.
Mas exemplos servem de quê?
Pra quê?
Eu detesto exemplos. Não os sigo.
Mas lá fora sou o outro.
Visto uma lingerie por baixo da bermuda.
Visto também um camiseta velha
e tênis sem meia. Pareço inofensivo.
A rua tem suas surpresas.
Nem tudo lá faz mal, é vil.
Tem muita gente boa andando por aí,
fazendo conversa na esquina, puxando papo,
querendo um pouco de atenção no bar,
dizer do que sofre, porque sofre.
Nós, na maioria das vezes,
só precisamos de um pouco de atenção
e uma pitada de luxúria
pra afogar qualquer lembrança.
E eu gosto disso.
Quantos homens eu já não peguei assim.
Entro no primeiro botequim lotado.
E começo a conversar.
Faço piada, jogo bilhar,
tento conversar com os caras.
De início, são todos mal encarados,
mas depois da quinta cerveja, me abraçam
e contam suas vidas.
No fim de toda a noite há sempre um banheiro ocupado
sendo cenário de uma foda.
Eu não os forço, não os arrasto,
como a gíria popular designa.
Eu só lhes dou atenção.
Paro, depois das 4 da manhã
para lhes ouvir.
Contam da esposa que não quer mais sexo,
dos filhos que só querem dinheiro;
os homens são todos iguais.
No geral, o ser humano é bem parecido.
Todos temos problemas nos relacionamentos
e, em algum momento, perdemos aquele laço
que mantinha tudo atado.
Passo a mão por cima das mãos deles.
Há um primeiro susto. Eu pisco, 
falo uma besteirinha no ouvido,
quem vai saber? a gente se conhece? é tranquilo!
e a noite, nossa cúmplice,
deixa os rastros de toda loucura.
Incauta, a maldita.
Há sempre o espanto da lingerie,
hoje uso vermelha.
Destoa da pele branca, faz charme.
Não faço mais que abaixar a calça
e empurrar a lingerie para o lado.
E todo pai de família
se deleita e faz valer seu direto à felicidade.
No final me beijam e agradecem.
Nunca cobrei,
fosse para cobrar eu não faria.
Porque o lance está no desconhecido,
no obscuro, em manter uma relação afetiva, 
mesmo que de uma noite.
Volto pelas ruas. Ando sem destino.
O sol, já grande no céu,
diz que é hora de voltar pra casa.
De fora, vejo meu apartamento respeitável
e me sinto um pouco vazio, sem sentido.
Porque sou outro, sou a noite,
sou a sujeira, a deturpação, o menosprezo,
o asco, o pedaço da sociedade jogado no ralo.
Por gosto e discurso.
Não há nada mais belo na vida
que experimentar as sensações
que o destino e o desejo me proporcionam.
Mesmo que seja um homem desconhecido
em um canto sujo qualquer do Brasil,
me fazendo mulher e sufocando uma dor mútua,
quieta e tácita.

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