Vontades

Eu era homem de fazer todos os seus gostos, lembra-se?
Nunca fui bom em demonstrar sentimento. Aliás, ainda sou péssimo. Quando lhe vi, consegui dizer que gostava de ti porque tropecei no primeiro degrau da escada. E então você me percebeu. Péssimo.
Houve também o dia que fiz café da manhã e, quando fui levar pra cama, derrubei a bandeja e você teve que me ajudar. Ou isso ou me cortaria inteiro, esse era o seu medo, lembra-se?
E quando eu fui tirar as plantas do nosso quintal? Enquanto tirava as rosas, machuquei a mão com os espinhos. Péssimo.
Eu era péssimo quando você estava por perto. Porque eu queria ser ótimo.
Porque você era ótimo e eu nunca me senti à altura de ter alguém assim feito você perto de mim.
Eu não lhe merecia, homem.
Eu nunca lhe mereci, a verdade é essa. Mas sempre fiz os seus gostos.
Ao menos tentava. Fazia o bolo de fubá cremoso que você gostava, o café pronto que cheirava pela casa. 
A massagem depois do dia exaustivo, o sexo que nunca fora pouca coisa.
A gente se amava, homem. Melhor, a gente se adorava.
Era mais que tudo o que se sente comumente. Era adoração.
Adoração pelo sorriso que você me oferecia todas as manhãs e que eu colhia feito a planta que a gente colhe bonita do jardim. Pelos bilhetes nas manhãs seguintes.
Você, homem, era tão meu. Intrínseco, implícito, fazia parte de cada detalhe da minha rotina e da minha casa. Pedir você em casamento e trazê-lo para o meu canto foi uma decisão que me tirou o sono por alguns dias, mas foi a decisão mais acertada.
E você veio.
E como veio, você foi.
E eu pedi pra você ficar, mas você não ficou.
Porque os amores não são, eles estão, são transitórios como o tempo. São como aquela velha parábola que diz que o homem ao banhar-se em um rio pela segunda vez não é o mesmo homem da primeira, nem ele e nem o rio. Porque o rio corre e o homem envelhece.
Os nossos amores são parte do um imenso repertório que montamos e um dia acabará, não com a morte física, mas com a morte de tudo, do mundo, das coisas.
Mas eu fiz e faria de novo, porque só a lembrança de ter feito já me basta.
Só a sensação distante de ter me lhe beijado já me basta.
Lembrar que durante as noites eu gemia o amor que você me dava já me basta.
Porque o amor basta, mesmo quando de péssima qualidade.
Não para todos, para alguns. Para mim, por exemplo, é o que vale na vida.
Bebo agora uma taça de vinho e enquanto vejo nos vitrais o teu rosto tão bonito, rio pela vida que tive e tenho.
E agradeço.




[Ouvindo: Stay - Rihanna]

5 comentários:

  1. Adorei o texto, a parte em que diz "Você, homem, era tão meu. Intrínseco, implícito..." demonstra realmente algo severamente marcante. Gostei também do momento que diz que os amores são como a parábola do homem que se banha no rio. Nós nunca seremos os mesmo, tanto para o bem como para o mal e tudo que vivemos deixa marcas.
    Adorei o texto!

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  2. "Porque os amores não são, eles estão, são transitórios como o tempo. São como aquela velha parábola que diz que o homem ao banhar-se em um rio pela segunda vez não é o mesmo homem da primeira, nem ele e nem o rio. Porque o rio corre e o homem envelhece."

    Sem mais.

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  3. Lindo, Marcel()! Forte e contagiante, estava com saudade de ler seus escritos.

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