A flor da saudade e seus espinhos

E depois das cinco da manhã tudo parece se manter intacto. Acabou o Corujão, acabou a madrugada. E aos poucos o céu vai ganhando o tom azul-roxeado que os fins da madrugada têm, tão característico. O céu vira, por alguns minutos, uma imensa flor, desabrochando bem em cima das nossas cabeças e nós nem percebemos. Estamos dormindo, ou dançando dentro da boate, ou trepando com o desconhecido, ou indo para o trabalho, de olhos fechados, aproveitando os minutos que antecedem o começo do plantão.

E às cinco da manhã você ainda dorme em outra cidade, me é uma incógnita. Não reside mais no coração, mas devasta minha alma e meu corpo. Minha necessidade de saber quem você é, com quem anda e quais são as suas vontades. Tenho essa estranheza, querer bem a quem não me quer. Saber das coisas boas que lhe acontecem, dos maus ocorridos. Tentaria fazer algo que o consolasse, que ajudasse com tudo o de ruim. Que o de bom a gente aproveitaria juntos, de repente. Mas sem nada, só como amigos que somos. Que nos impusemos ser.

São cinco da manhã e os raios do sol começam a quebrar o arroxeado que há. É um pouco de laranja que nasce no canto do céu. É o sol que vai saindo do breu, arrastando as sombras para o lado subversivo que lhes cabe, de esconder todas as maledicências vistas na madrugada. As vagabundas que violaram o corpo com alguém que não as queria; com os homens que saíram de casa de madrugada, fingindo um plantão inesperado às suas esposas, mas indo se encontrar com os travestis costumeiros; As garotas que voltavam da casa de uma amiga, do namoradinho, e não conseguiram se defender dos três marmanjos na esquina, que as arrastaram para dentro do carro e as comeram de toda forma.

Os raios nascem preguiçosamente depois das cinco da manhã. Demoram a se espreguiçar. E eu ainda acordado. Não consegui dormir. Depois do Corujão começo a zapear os canais da tevê. Pago por cem canais que, juntos, não conseguem fabricar bom conteúdo para um mísero sequer. O cheiro de ar fresco me incomoda e me enjoa. A boca amarga, por não ter escovado os dentes. A barriga anunciando que precisa ser esvaziada. Uma noite que se repete há dias, talvez meses. Logo chega o jornal. O cara que contrataram para me entregar o jornal o joga bem devagar, não faz barulho. Um cavalheiro. Esses dias o vi pela janela. Lindo. Tem os braços peludos e a perna agarra-se à calça justa. Talvez, amanhã, dê a ele uma xícara de café. Quem sabe.

As cinco horas batem no relógio e eu não consigo matar isso que há dentro. As incertezas que me consomem, a retirada de campo que fiz para nunca mais voltar. Os obstáculos que me impus, mas que logo foram vencidos. Há um quê de vitória, mas também de abandono de minha parte. Deixei que as traças comessem minhas roupas e o chão está sujo. As janelas tem a marca dos meus dedos, ainda das noites que você me consumia em pé. Esses dias minha mãe entrou em casa e saiu logo depois, quase vomitando com o cheiro. Não que eu goste de sujeira, mas a podridão me remete a você. E sei lá, gosto desse saudosismo maldoso.

Daqui a pouco eu tomo um banho e me visto para trabalhar. Faço a barba, escovo os dentes, tiro a ramela do olho e bato uma punheta. Os dias servem para isso, renovar as pessoas. Mas para mim, é tudo uma grande piada. Eu chego em casa, depois do expediente, e jogo-me de novo no sofá velho emprestado. Deixo a comida azedar na pia. Arroto o Fast-food que comprei antes de voltar para casa. Tiro a botina e não me importo com o chulé. As aparências enganam. A vida que eu levo fora daqui é só um belo espetáculo escondendo a morte que já se instaurou.

Um comentário:

  1. Parece-me necessário termos um certo nível de esculhambação na vida, quando perdemos algo/alguém importante. Felizmente, uma hora vem o tão esperado "click" e estamos prontos para arregaçar as mangas e ir à luta. A vida é complicada, estranha e quase sempre triste... mas que escolha nós temos?

    ResponderExcluir