Miguel

Hoje eu deitei na minha cama e estendi os pés, cansados. Os dedos doendo, acabava de tirar a botina depois de trabalhar. Um pé vermelho da amarra do calçado, tão amarrado quanto minha vida.
Deitei a cabeça de lado e lembrei-me de quando eu acordava cedo e tomava café da manhã na padaria por preguiça de fazer o café em casa. Acordava às quatro, me banhava, fazia a barba e, depois de vestido, saía de casa para o trabalho. Não sem antes passar na padaria e pedir um café preto.
Lá conheci Miguel, guri alto e ruivo, a barba bem feita por ser o balconista. Eu pedi o café a primeira vez e depois bastava eu chegar, puxar a cadeira e ele perguntava se descia o mesmo? E eu meneava com a cabeça positivamente. E ele me sorria. Abria uma boca cheia de dentes amarelados, uns dentes grandes dentro de um maxilar largo. Cara de cavalo.
Puxava assunto de um tudo comigo. Falava-me do time que torcia, dos jornais que já não conseguiam trazer uma reportagem digna, dos CDs que ele gostava e me dizia, vez ou outra uma poesia. Na verdade, ele dizia as músicas que gostava e faladas na sua voz macia, mas grossa, nos maxilares largos e na boca rosada, parecida com uma romã, ficava igual a poesia.
Nunca gostei de ouvir música, mas era Miguel falar uma daquelas e lá eu ia atrás. Baixava os CDs que ele dizia serem bons, lia livros pra poder também falar alguma poesia e me arriscava, vez em quando, assistir algum jogo de futebol a fim de conversar legal com Miguel.
Um dia me convidou pra passar à noite na padaria. Disse que iria fechar mais cedo e que alguns amigos iriam até ali beber uma cerveja. Convidou-me para ter com ele e seus amigos e, há tanto tempo não era convidado para nada, não hesitei. Nove horas em ponto e eu estava lá. Banhado, bem barbeado e vestindo uma bermuda e camiseta regata, que o calor não estava para brincadeira. Cheguei e já havia começado. Apresentou-me todo mundo, puxou uma cadeira pra mim e me serviu uma cerveja.
Teve de um tudo. Miguel falando de Playboy, um amigo do guri comendo a namorada no banheiro, alguém, que não me lembro do nome, só que tinha uma mão enorme que me batia o ombro toda piada contada, me oferecendo maconha. E eu rejeitei. Já estava bêbado, se eu fumasse um, ficaria louco que não lembraria o rumo de casa.
E não lembrei. Acordei na cama de Miguel, pelado, ele do meu lado. Fiquei branco, mais do que eu era. Miguel estava do meu lado, também pelado. O que havia acontecido eu não sei, mas fui pegando as minhas roupas, colocando meu chinelo, tentando deixar um bilhete de “muito obrigado, meu caro!” Mas Miguel acordou e falou que eu ficasse. Levantou e ainda nu – será que ele não notava que toda vez que passava perto de mim, seu pau me roçava – fez o café para nós.
Contou-me sobre tudo o que havia acontecido na noite anterior. Mas sobre o fato de acordarmos juntos e pelados na mesma cama, nada fora dito. Acompanhou-me até a porta e então me disse tchau, que nos víamos amanhã. E desde então nunca mais nos vimos. Comecei a fazer café em casa antes de sair trabalhar. Deixei de ver Miguel e sua cara de cavalo.
A bunda de Miguel me atormenta até hoje. Uma bunda branca, sem pelos, mas cheia de pintas. Uma afronta a qualquer homem. Penso nela como se fosse a transição para o mundo da felicidade. Um oásis. Mais para um portal. Quando o vi nu, fiquei excitado e nada fiz. Preferi ficar olhando a tentar fazer algo e me dar mal. Miguel poderia acordar e me bater, perguntar, mas o que está acontecendo aqui, meu irmão? E então eu não saberia como explicar aquele meu olho pidão e meu pau duro.
Olho o teto e vejo duas lagartixas brincando. Masturbo-me pensando em Miguel. Levanto e faço um café preto.

Conto originalmente publicado no Café com Whisky.

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