As chaves de Caio

Como um peso que cai morto do abismo, Caio deixou-se cair na cama, exausto, depois de foder a noite inteira. Não costumava ter com quem trepar, por isso, quando acontecia, aproveitava. Levou alguns aparatos. Chicote, algemas, gel lubrificante com gosto e aroma. Tomou um banho, fez a barba, mas deixou um pouco dos pelos no rosto. Também  no peito e no pau. O garoto disse que gostava. Caio era peludo, estatura mediana, passava um pouco dos 170 centímetros e tinha um sorriso encantador. Era a isca que ele usava para atrair os garotos que comia.

Chegou da rua e foi fazer um café. Coou no pano. Gostava de café forte e puro. Aprendeu a tomar café com o pai. Acordava de manhã, quando ainda morava com ele, e sentia o cheiro vindo da cozinha. Tomava café puro para o pai o notar. Não adiantava muito. Era um homem muito ocupado. Tinha uma empresa a que administrar, coisa que Caio nunca entendeu muito bem, mas que já havia visitado. Um escritório com muitos caminhões estacionados na garagem. Homens do lado de fora, pareciam mecânicos, todos de macacão e cheiro de graxa. Todos sujos.

Ele gostava do cheiro da graxa misturada com o suor. Sabia do cheiro pelo vizinho de parede. Jonas. Mecânico do bairro, era ele quem consertava o carro da família. Toda vez que Caio ia buscar o carro com o pai na oficina, Jonas lhe dava um pirulito com a advertência de que era para chupar só depois de almoçar. Ele dizia que sim, mas chegava em casa e se lambuzada com o doce. Caio guloso, assim era chamado pelo pai. Come de tudo o garoto, não pode ver comida, doce, fruta, não há o que chegue pra esse moleque, reclamava o pai. A avó advertia o pai, deixe que coma, é bom comer de tudo pra que tenha saúde.

Caio agora, deitado na cama, lembrava-se da avó. Pobre coitada. Uma velha mal amada, que dedicou-se a vida toda à família que a detestava. Não podiam ouvir sua voz que entortavam a cara, mas a chamavam para todos os eventos familiares, ficava feio não convidá-la. Olhou para o lado e viu sua foto no porta-retrato. Sorriu. Ela usava um chale tricotado por ela mesma. Adorava costurar, fazia de um tudo em crochê e tricô. Era admoestada sempre pelos filhos pela bondade. As pessoas passam a perna na senhora, minha vó, disse certa vez Caio. E ela nada disse, meneou a cabeça e sorriu.

A bondade da avó, Caio não havia herdado. Como herdar a bondade quando a maldade fora semeada desde cedo em sua alma? As coisas são como são ou são moldadas? Caio se perguntava sempre sobre isso. Não saberia dizer se as maldades que cometia eram coisa dele ou pelo que fizeram a ele. O garoto dessa noite gritou pouco, aceitou seu destino logo. Os olhos eram tristes, pouco confiantes. Tinham a água costumeira do choro, olham tristes para Caio. Com a boca amordaça, tentou gritar, mas deixou-se na cama, onde estava amarrado. Fechou os olhos e deixou que acontecesse o que tivesse que acontecer.

A primeira surra de Caio foi aos 12 anos, quando, sem querer, bateu a bicicleta no carro do pai. O Monza parado em frente à casa do subúrbio ficou um pouco riscado do lado direito, o que dava para a rua. Caio perdeu o equilíbrio e caiu em cima do carro. Com o peso do corpo e a velocidade em que estava, ele se arrastou  pela porta do carro recém-lavado. Brilhava que só. O pai tinha um amor todo sem sentido no carro, mais que no filho, todos sabiam. Caio apanhou com a mangueira do chuveiro. Apanhou trinta minutos, que para ele tiveram a duração de três horas. No começo tentou se esquivar, fugir, pedir socorro, mas depois que não viu jeito, chorou e ficou quieto. Deixou que o pai extravasasse a raiva. Ficou a semana toda sem ir à escola.

Caio range os dentes, senta-se na cama, coça o pau. Dói um pouco depois de tanto uso. Tirou para fora da cueca e deixou. Gostava de vê-lo assim, mole. Um pau mole, tão mais bonito que um pau duro. Macio, um peso morto gostoso no corpo. O primeiro fascínio com o próprio pau fora aos 14 anos. Não sabia o que significava masturbação, mas na escola, o próximo tópico, na aula de educação sexual, seria esse. Ficou com vergonha de chegar na escola sem saber. Se a professora perguntasse a ele e não soubesse responder, seria a piada para o resto do semestre, ano. Perguntou ao pai, que ficou sem jeito, coçou a garganta e disse que deixasse de besteira, que aquilo não era assunto.

Ficou sem entender, como aprenderia ele algo, na escola, que deixava o pai tão desconfortável. Seria certo?  Estava do lado de fora, jogando bola contra o muro. Coisa que fazia sempre que precisava desestressar. Viu o vizinho sair, o Jonas. Perguntou se ele estava bem e Caio respondeu que tinha algumas dúvidas. Mas quais são, rapaz? Caio pôs-se a falar. Falou da masturbação, que não sabia o que significava, qual era o problema em aprender, por que o pai havia rejeitado a ideia com tanta veemência já que a professora, de qualquer forma o ensinaria. Jonas riu. Olhou para os lados e a rua vazia. Caio, se você entrar aqui na oficina posso te ensinar o que é masturbar. O garoto entrou. Aprendeu.

Chegou em casa com um pirulito na boca, tentando disfarçar o gosto de sêmen na boca. Nunca contou para o pai. 

Levantou da cama e foi tomar um banho. Saiu nu do banheiro e assim ficou. Parou na janela. São Paulo trabalhava. A sua noite parecia incólume para a metrópole. Sempre teve a impressão que o indivíduo sempre foi parte descartável dentro de um sistema tão grande quanto aquela cidade. 40% do PIB nacional concentrado em frente à sua janela. Como uma cidade pode parar com tanto trânsito e violência? Como poder ser o paraíso de quem compra e o inferno para quem vive detento tanto dinheiro? Viver nela era o seu alívio. Ninguém o notava, ninguém sentia o seu cheiro. A sua saliva nunca foi alvo de julgamento. Ele escarrava nas bocas de lodo e ficava bem. Devolver à cidade aquilo que recebia. Troca justa.

Colocou a roupa para lavar. Na camisa o cheiro do suor. Havia transado em cima da própria roupa. Não tinha muito tempo para pensar em tirar a roupa. Raspou a própria e a do garoto também. O garoto tinha 18 anos, uma criança. Deixou-se enredar por Caio. Conheciam-se de olhares. Um dia Caio o convidou para tomar um café e conversaram a tarde inteira. Contou dos pais que não o aceitaram, aos 14 anos, quando ele se disse gay. Colocaram-no para fora de casa. Dormiu na rua, no começo, mas depois foi se ajeitando. Tudo o que ganhou com o trabalho que tinha, era investido. Tão novo e já tinha um apartamento. Pequeno, mas dele. Falava com orgulho. Caio sorria a cada nota de emoção que sentia na voz do rapaz. Por dentro ficava imaginando como ele gemia. Se gritaria, se gostaria. 

Como eram variadas as reações dos garotos com os quais já havia transado. Alguns gritavam, outros pediam pelo amor de Deus, depois percebiam que Deus estava longe dali. Outros choravam. Alguns deram trabalho. No fim, Caio conseguia sempre o que queria. Amarrava-os na cama. Mas antes transava com eles. Nunca foi direito ao que queria. Transava. Com alguns, passava a noite inteira junto. Comia-os como eles pediam. Quando algum garoto pedia, nas conversas anteriores à noite, me come com força, quero que você me maltrate, me mate de tesão, ele tinha uma pontada de pena. Nenhum deles poderia imaginar como vaticinavam a própria sorte.

O dessa noite havia sido até fácil. Haviam transado duas vezes. Na segunda ele pedira a Caio que o batesse. Pobre. No primeiro soco o garoto já havia se assustado, mas já não havia o que fazer. Caio deu três socos no rosto e um no estômago. Perdeu o ar e ficou zonzo. Caio então o amarrou na cama. Primeiro as mãos e depois os pés. Esticou bem e abriu as pernas. E fez o que sempre fazia. Matou o garoto. Primeiro alguns socos, depois alguns chutes. Enfiou o pé em sua boca. Mandou-o chupar. E o garoto chupou. Chorou, tentou morder, mas chupou. Caio o desfigurou e, um pouco antes de terminar o que sempre fazia, chegou perto do ouvido e disse, foi um prazer!

Saiu de lá, limpou todo o apartamento. Limpou como quem limpa a casa em dia de faxina e no fim botou fogo. Pelo que lia, sempre descobriam quem era a vítima, mas nunca conseguiram saber quem era o assassino. Chamavam-no de o Exterminador do Presente. Quase ficou ofendido com a alcunha conferida pela imprensa, mas considerou que aquilo era o detalhe menos importante.

Acordou no dia seguinte. Fez café, tomou banho e foi trabalhar. Passou em uma livraria e comprou algum romance. O atendente, um garoto de uns 16 anos, sorriu para ele. Ele piscou e sorriu de volta. Na nota fiscal havia seu telefone. Pobre.

Um comentário:

  1. Tá maravilhoso isso aqui. Esse Caio é exemplo dos tantos insanos soltos por aí. Belo conto. Abraços!

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