Se eu pudesse

O que eu queria?
Queria mesmo era parar de escrever poesia
ver coisa boa nas coisas,
que às vezes nem tem, eu crio.
Crio um sorriso bonito
na cara do moço no cio
que era só amarelo, discreto
sem vida.
Ele era todo besta, as pernas cruzadas,
fazendo charme feito Alain Delon,
mas era podre,
nos olhos eu via que era podre.
Não sabia querer, fazer,
do tipo que não sabe foder,
que mal beija e sai de cima.
Mas eu o crio imenso, bonito
e parece poesia, mas não é.
Poesia é quando a coisa é feia,
parece besta e algo de bom salta aos olhos.
Uma flor no cabelo, uma perna,
um pé feio, um dente que falta, 
uma mão que encosta o braço e o arrepia inteiro,
um beijo, um bom dia de uma boca macia,
uma boca macia que faz um bom dia,
uma cara feia de um rosto bonito,
um chulé, uma bunda grande, um braço forte,
um pau, uma transa, um abraço
uma soneca debaixo daquela árvore grande,
um sítio, alguém.
Poesia bruta, gente pouca
que a gente aumenta.
Traça uma palavra aqui, um paradoxo acolá,
tece as entrelinhas,
põe um clichê bonito
e faz surpresa.
Quis tentar enfeitar o cotidiano,
extrair dele o que realmente importa.
Por que ver a beleza no sinal fechado?
Por que se importar com o mendigo?
Por que querer sorrir para um desconhecido?
Eu gosto do belo, mas meu forte são as trevas,
que me consome inteiro quando me deparo com tudo,
com o mundo que não presta,
com a gente que tem pressa,
com a mão que ameaça,
um tiro que perpassa,
a morte que chega.
Queria deixar de fazer poesia
e parecer otimista.
Odeio otimismo, odeio a benevolência,
sou um triste convicto, não ameaço ninguém,
mas maltrato quem me faz bem
no mais sórdido pensamento.
Entrego-me aos extremismos,
mas não os acredito.
Amo sem amar,
odeio sem odiar,
que confusão eu faço
(por aqui também, perdoem-me).
A poesia me salva para me jogar de volta.
Subo em seu lombo
para ser arremessado logo adiante 
em frente ao Cerberus faminto,
que me aniquila e me derrota
e me maltrata e me coloca no lugar
de onde os fracos de alma não devem sair:
a resignação.
Lugar-comum da gente resignada é a poesia,
onde a gente pode ser tudo, mesmo sem ser,
onde alcançamos o paraíso, mesmo residindo o inferno,
onde fazemos as pazes com a vida,
mesmo a morte sendo certa.
Faço poesia como quem respira,
mas as palavras são mero aparelho respiratório,
não dou conta sozinho, preciso de ajuda.
Se eu fosse forte, escreveria outra coisa,
partiria para viver,
faria um filho em alguma mulher disposta,
teria uma casa com jardim e garagem,
teria ferramentas e arrumaria as pendências domésticas.
Mas não, sou fraco, sou resignado,
por conseguinte, sou poeta.
Que tristeza a minha ter conquistado um título.
Ser poeta é ser o quê?
É fazer poesia para quem?
Quem me consome?
Quem me come?
Quem me fode a boca inteira
e maltrata o coração para as desilusões necessárias?
Queria parar de escrever poesia
e achar que entendo de mim,
quando, na verdade, sou um perdido dentro de um corpo
que não é meu,
que não sou,
que estou. E indo.

4 comentários:

  1. Queria conseguir me expressar igual você, ou pelo menos como me expressava antigamente...
    Meu caro (e velho) amigo, você é uma alma talentosa DEMAIS!
    P.S.: Não, não queira parar de escrever poesia. Perder-se é achar o caminho.
    Maíra

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  2. Não sei mais nem o que comentar...
    Qualquer elogio vai ser pouco, entende?!
    Foi uma grande surpresa ter te encontrado nesse mundo poético esse ano.
    Estou levando esse poema comigo, como prova de identificação e respeito por tudo que tu escreve.

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    1. Tu é magnifico, e sim... Te adicionei no Facebook. (só lhe seguia)

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  3. "Queria parar de escrever poesia
    e achar que entendo de mim,
    quando, na verdade, sou um perdido dentro de um corpo
    que não é meu,
    que não sou,
    que estou. E indo."

    Doído, bicho... E esses são sempre os melhores... LINDO!

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