Dia triste

Pensei que não fôssemos nos ver nunca mais. Foi isso o que lhe prometi, lembra-se? Disse com todas as letras que você nunca mais tornaria a olhar em mim. Qual não foi a minha surpresa quando, pela manhã, abri o jornal e me deparei com você ali.

Era o café da manhã, as coisas estavam calmas até então. Eu havia me levantado, feito a barba, me vestido e tomava café. Café que tomávamos juntos, mas que agora tomo sozinho. Troquei a marca do café. Abri o jornal e tinha sua cara estampada no caderno de Cultura&Lazer. Seu sorriso maquiavélico, os dentes bem perfilados, uma boca molhada que eu percebi de imediato, mesmo a foto sendo em preto e branco.

O seu nome pairava em cima da foto, junto das letras grandes que promoviam a sua exposição. E aquilo foi o suficiente para me fazer tremer.

Sentei mais sossegadamente no sofá, pensei alguns minutos, abri o caderno do jornal para ver se eu realmente havia lhe visto ali ou se era pura imaginação, saudade, coisa banal que o coração apronta. Que nada, você ainda estava ali. E eu não resisti quando a mente começou a me lembrar de você e cada detalhe seu.

Tentei fugir ao máximo de todas as reminiscências, todos os lugares. Olhava para a janela e via uma tela de cinema onde passavam todas as cenas do nosso filme. Sem fim, meio filme do Almodóvar onde as coisas ficam penduradas, suspensas, mas sem vermelho algum para me fazer feliz ou elegante.

Sai para trabalhar e chovia. Peguei o guarda-chuva, mas as minhas pernas insistiam em molhar. Dobrei a calça social e deixei que o sapato fosse molhado pelas poças d'água. Não havia o que fazer, a chuva é irremediável. Quando começa a cair, não tem quem a pare.
Pensei em você quando vi a chuva caindo.

Lembrei do jornal, lembrei das nossas brincadeiras na varanda, Korn tocando no aparelho de DVD, o acústico. Você me fodendo na sacada, de madrugada, perigo de alguém nos ver, mas estava tudo bem. Éramos nós. Irremediáveis.

Fomos irremediáveis até que remediados fomos pela vida e pela dor. Pela presença de quem não devia estar ali conosco. Algo não planejado. As coisas são assim, tristes mesmo. Um dia a gente ama, noutro a gente desgosta. Que a vida tem um tanto de ruas e a gente se prende às vielas. Vai saber.

Vi um cartaz grande em frente ao prédio onde seria a exposição. Caminho do serviço. Ainda chovia. Aproveitei para me proteger sob a marquise. E você estava lá.

Dentro da galeria.
E me olhou. 

A princípio só minhas pernas tremeram. Você parado, estático, me olhando. Nada acontecia. As pessoas passavam por mim, falavam ofensas - havia me esquecido de fechar o guarda-chuva - e eu só ficava a lhe olhar. O tempo parou um bocado de tempo. Minutos que se arrastaram. A tua boca que me chamou de tantas formas e meu corpo preso ao chão.

Você andou para a porta, chegou perto de mim e me abraçou. Perguntou como eu estava e eu disse que estava tudo certo. Falamos do tempo, dessa chuva que atrapalha tudo, não é?

É.
Atrapalha
(e eu só conseguia olhar sua boca)

Lá dentro você organizava tudo pelas paredes. As pinturas. Todas lindas. Fazia um apanhado de tempo que eu não parava pra analisar o que você pintava. Bem bonito. E eu via muito de nós ali. Eram fotos que inexistiam como movimento, captavam justamente o aspecto estático dos seres humanos e do corriqueiro.

E aquilo me bastou. Fui embora. Não me despedi.

Na rua podia sentir os olhares me julgando por ter entrado na galeria, por ter falado com você. Por ter aceito o seu abraço. Que grande besteira. Mas a verdade é que eu queria senti-lo de novo perto de mim. Ficar sozinho não me apetece, não me agrada.

Corri como pude, perdi o guarda-chuva no meio do caminho. Molhei toda a roupa. As calças dobradas, molhadas, agarradas ao corpo, eu cheguei no escritório parecendo um louco. Assustei todo mundo. Eu estava assustado por dentro, acho que isso transpareceu para quem me via.

Corri ao banheiro.
E chorei.

Entristeci de uma forma, que não consegui fazer nada o dia inteiro. Chorei. Só chorei. Vez ou outra um colega de trabalho me trazia um lenço, uma palavra, algo para comer. E eu declinava de todas as gentilezas. Desisti de trabalhar aquele dia, mas não queria voltar para casa.

Sai do escritório e ainda chovia. Chuva torrencial no Rio de Janeiro, a previsão do tempo não sabia quando cessaria aquela água toda e, verdade seja dita, queria mesmo era que nunca acabasse. Que a água chegasse até meu apartamento e levasse consigo todas as lembranças entremeadas nas paredes.

Fui para a praia, tirei os sapatos e as meias. A camisa. E entrei no mar de calça. Um louco querendo nadar. Não sabia direito, mas esperei atenciosamente que as ondas pintassem meu corpo, me fizessem ter algum sentido. Era vazio demais para um homem só.

Afundei.
E encontrei a redenção. 




[Ouvindo Nicolas Jaar - Noise]

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