Por que nós?

Acontecia quando você chegava perto de mim
e o seu toque, o seu cheiro, a sua vontade
que pulava do seu corpo e ia para o meu,
e depois disso, nêgo, não havia o que o parasse
nossa adição, nosso amor. Éramos serenos,
calmos, nunca fomos violentos, dado que
a maior violência arrebatava o coração e não
o pau.
Acontecia quando casávamos nossos corpos
em noites de chuvas que nunca paravam
e o seu sexo piscava para o meu,
e quando dávamos conta, éramos um lençol,
uma cama, uma suadeira, duas línguas e um só
mar.
Acontecia quando, no calor, você raspava
em mim a sua perna peluda e a minha,
já com vontade, raspava de volta e, nêgo, 
dava-se o sarro, as piadas, o riso frouxo.
Nosso sexo nunca fora algo sério, sensual
por se fazer blasé, nosso sexo nunca fora algo
chique, dado a entendimentos. Não sei nomear
as travessuras que fazíamos na cama, pois
que nosso sexo era livre, calmo, risonho,
encontrava meios de acontecer, sem treino,
sem estudo. Éramos dois jovens e uma dupla
ânsia.
Acontecia quando eu intrigava o seu corpo
com o meu corpo, quando a minha vontade 
chamava a sua à luta, quando minhas pernas
cruzavam as suas, debaixo da mesa, e nada mais
importava senão o delírio, o fascínio, o gemido,
o tesão, o bafo, os pés que tremiam, as costas
ensaguentadas e arranhadas, a bunda dura, o pau
idem.
Acontecia quando existíamos nessa similaridade,
cônjuges, dois seres que dividiam o mesmo Karma,
as mesmas dores, o mesmo sofrer. Quando os sorrisos,
mesmo que amarelados e faltando um dente, sorriam,
investiam àquele outro, àquele todo, àquele ser. A ponte,
a estridente ponte que atravessávamos, que guardava,
do outro lado, o pote cheio d'ouro, o graal, a caixa de
pandora. 


Acontecia porque existíamos, e o fato de existirmos já era lindo.
Mas deixamos de existir e coabitarmos uma cama,
uma casa, uma conta corrente, uma conta de luz e outra 
de água, uma parcela do carro, um gás, um CD,
um cinema, um filho, uma assinatura de tevê a cabo, 
uma agenda, um varal e um balde cheio de roupas sujas.
E não existimos não por morrermos, que seria o fim do ciclo, 
o que fora pedido desde sempre, razão por que lutamos,
mas por deixarmos de existir nessa coabitação sentimental,
parental, esse papel que assinamos e nos fazia maridos,
essa vontade de estar e ficar. Porque nossas bocas corromperam
o laço, o traço, o cabaço tirado e banharam outros
lábios.
Deixamos de empregar bons sentimentos,
deixamos de nos amar irrepreensivelmente,
deixamos de nos gostar mais do que os filmes do Almodóvar,
deixamos de fazer o carinho quando a noite chegava,
deixamos de nos amar vivamente dentro do carro,
deixamos de dedicar músicas, escritas à caneta, na porta da geladeira,
deixamos de chorar juntos com Cinema Paradiso,
deixamos de sentir a falta que mata, enforca, sufoca, suspende e faz cair no chão.
Essa última, a mais esquecida. A falta.
Não fazíamos mais falta, não nos percebíamos,
quem éramos nós? Por que nós?
Por que nos conhecemos? Qual o intuito de Deus em fazer nossas vidas cruzarem?
Acontecia que éramos cegos, crianças,
acreditávamos na filosofia do olhar inato,
que, posto no outro, dera nisso. Deu em nós.
Deu em súplica, em poemas, em dedicatórias,
em sexo bom, em amor ruim, que acaba, que finda,
que pormenoriza, que deleita mas desqualifica,
que enaltece para aviltar, que come para cuspir
e que esvai junto com o vento no litoral.



[Ouvindo: Por Que Nós? - Marcelo Jeneci]

2 comentários:

  1. Lindo, fugaz. Do começo ao ponto final.

    Realmente, tu tem coisas bonitas por aqui.

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  2. "sempre tem gente pra chamar de nós"

    Lindo esse poema, muito tocante, parabéns!

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