Visita de Flora

Foto: Marcelo Rezende


Flora Conduta olha-me de soslaio, quieta, absorta em seu pensamento. Acho que me julga intimamente e pondera as palavras que usará. Talvez não use. Mastigue tudo e deixe para outra hora. Agora pode não ser a hora exata. Tem disso, pesar e pesar mais uma vez as coisas que fala. Não à toa fala pouco. Sábia, inteligentíssima, muita gente gostaria de poder ter a oportunidade que eu tenho. Flora vive um pouco em mim. Um pouco místico, eu sei, mas ela é a parte feminina que eu exalo. Eu, homem, quero ser mulher, mas não sei como. Ser mulher sem saber ser tem um peso vulgar, avantajado. Quero ser Flora, reclusa, íntima, elegante.

Vejo-a cruzando as pernas e, ainda homem, abro as minhas. Somos tão opostos, penso. Ela pousa a mão no vestido e solta a fumaça do cigarro que fuma. Um desses pretos com sabor de canela. Diz não gostar, mas está experimentando. Eu a olho e rio, sei que ela puxa papo para não me deixar pensando demais. Sabe de mim, a danada. Ela só não me entende, não consegue captar os caminhos que a minha mente percorre. 

Eu quero tudo, quase tudo. Na verdade, eu quero tudo que caiba em mim. Quero morar no meu quarto, abrir as pernas aos homens que tanto gosto, gozar. Gozar! Quero que os vizinhos me ouçam e enrubesçam. Ou que batam à porta e peçam para participar. Não gosto de roupas, elas pegam nas minhas "dobras". Incomodam, prefiro ficar sem. Olho-me no espelho, nu. Um corpo bonito, com algumas gorduras. A bunda balança, a barriga dobra, o pau rijo pede. Eu não sei mais o que fazer.

Volto a mim e Flora me olha como se acompanhasse todo o meu pensamento. Para por um momento em mim e tenho a sensação que o quarto parou para nós. A fumaça que sai da sua boca fica em cima do chapéu que ela ostenta no topo da cabeça. O sol queima forte, ela lembra-se que é necessário movimentar-se e volta à cena. Em pé, no limiar da porta do quarto para a cozinha, olha-me de volta e sorri, triste. Sabe o que passarei, entende que eu preciso disso e vai embora.

Deito e olho para o teto por algum tempo. Meu vizinho me chama na frente da casa. Conversamos alguma coisa, ele repara em mim, me roça, me encosta, e quando dou conta estamos nus, na cama. Grita desaforos, bate em mim, minha bunda balança - a gordura que ainda não eliminei - e o sente inteiro, num movimento que me lacera e beatifica. Sou um anjo recebendo as asas, e também o cajado. Lembro de Flora enquanto ele me sodomiza e percebo que ela não me aprova, mas não me recrimina. 

Ele vai embora e sinto-me bem. Bebo um café, abro o computador e acesso a internet. Perco-me por horas procurando fotos, lendo poesia, um pouco de pornô e converso com rapazes que certamente nunca me encontrarei. São bonitos, educados, alguns sucintos e outros diretos. Quero te comer todo, me diz um, que tem como foto de perfil o peito cabeludo e um pouco da cueca abaixada, insinuando algo. Rio. São todos tão comuns, machos atrás de outros machos, mas querem-me como fêmea. Flora viraria a cara, acho pouco provável que ela procure sexo virtual. Ela me passa a imagem de quem caça; põe um vestido bonito, senta-se em um restaurante e, fêmea, seduz quem lhe chame a atenção. 

Penso em dormir, deito-me e perco o sono. Viro pela cama procurando algo que já encontrei. Talvez um dia eu lhe conte essa história e ela possa sorrir, achar graça e contar o que pensa de mim. Enquanto isso infiro, perscruto e (tento) desvendar um pouco mais dela. 

Flora... ah, Flora.





[Esse texto nasceu da necessidade de entender um pouco o alter ego da escritora paraibana Letícia Palmeira, depois que li seu texto "Minuto de Acesso".]

2 comentários:

  1. Estou aqui, Seu Marcelo. De boca aberta e quase aos prantos. Já sentiu vontade de chorar quando alguém, de súbito, diz algo que você jamais conseguiria dizer a seu respeito? Chorar escondido é bom. Eu li e fui desvendando um mistério que nem sei como me surgiu. Mas é ela. Eu fiz alguns grifos:

    "Sabe de mim, a danada. Ela só não me entende".

    "(...) percebo que ela não me aprova, mas não me recrimina".

    É ela. É Flora Conduta, em sua mais terrível nuance. De não aprovar, de ser crítica demais (até consigo mesma). Mas creio que ela aprovaria sim o eu-lírico que é verdadeiro em seu texto. Porque é igual a ela.

    Admirável. Vou compartilhar seu texto. Faz tempo que não recebo presentes. E este é para sempre.

    Obrigada, lindo de beleza extrema.
    E os virtuais são mais canibais que os de carne e osso.

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  2. Que estonteante...
    Flora me lembrou a Wallis, do filme W.E, já assistiu?

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