Amor de periferia

Sou bairrista, da periferia, faço compras no bairro, faço feira. Quem hoje faz feira? Compra-se em supermercado, compra limpinho, lavado, hoje fruta vem com etiqueta. Eu compro verdura e fruta eu tiro do pé. Como pastel de queijo com garapa. Toda quinta-feira. Tradição de família que aprendi com a mãe. Ir às quintas, comprar a verdura e comer o pastel. Eu sou bairrista e gosto.

Tem ali na esquina o Bar do Zé. Zé é o cara que ninguém sabe como se chama, mas que todos chamam de Zé. Já foi um mercadinho, tinha de tudo. Quando eu tinha na base de uns 6 anos minha mãe comprava as miudezas lá. Detergente, era sempre o que eu comprava. Detergente e cigarro. Mainha me dava o dinheiro e lá eu ia pedir para o Zé. Ele me dava, dava o troco e eu conferia. Sempre fui audacioso.

Hoje é o Bar do Zé. Balcão de granito, cadeira de plásticos. As garrafas de pinga e amarula perfiladas nas prateleiras. No Bar do Zé meu avô comia ovo colorido quase sempre, só não comia em feriado santo e final de semana prolongado, que ele nunca gostou de abusar. Chegava e pedia um rabo de galo e um ovo colorido. Em dia de festa pedia um Para Tudo, que ele dar um trato na velha. Meu avô falava isso no meio do bar, comigo do bar. Meu avô era um poeta.

Eu tinha um amigo quando criança que me chamava para ir à sua casa. Ele me punha debaixo, coloca um desenho no aparelho de videocassete e ficávamos a tarde inteira assistindo. Em casa não tinha essas tecnologias. Sempre teve computador, mas era para o pai. Ele me deu meu primeiro beijo. Foi em um dia de calor forte, ventilador estava ligado, me beijou e deu um sorriso e eu achei lindo. Mãe dele viu e chamou a minha, deu-se o rebuliço. Descobri que não era tão lindo.

Fiquei de castigo, apanhei algumas vezes e todas as vezes que minha mãe se lembrava do ocorrido, apanhava de novo. Ela esquece-se e eu esqueci também. Esqueci que a gente tinha que gostar de alguém, casar com alguém, fazer filhos. Beijar na boca. A única vez que eu beijei na boca foi com meu vizinho e nunca mais. Esqueci de tudo e fui viver a vida. Estudei, cresci, Sou um homem feito, pelos no peito, pelos nas coxas, pelos no pau.

Meu vizinho, depois de um tempo mudou-se. No dia em que ele foi embora, toda a vizinhança foi chamada para uma festa na casa dele. A minha presença foi vetada. Àquela época eu não sabia o que vetada significava, mas eu ouvi minha mãe falando, que havia sido vetada. Eu tinha 14 anos, ele tinha 15. Conseguira uma bolsa de estudos e estava indo morar fora. Achei bonito isso de ir morar fora sozinho. Fiquei feliz por ele. A gente já não tinha contato, nos olhávamos de longe, sorríamos. Conversávamos na escola, onde não havia quem nos pudesse controlar, mas nunca ousamos desobedecer nossos pais. Nunca mais nos beijamos.

Essa semana ele voltou. Vi-o de longe. Ele está forte, parece que faz academia. Eu já fiz, hoje não tenho muito tempo, tenho barriga. Hoje o encontrei na feira. Cumprimentamo-nos, perguntei como ele estava e disse que bem. Sorriu para mim e eu me perdi em tanta coisa que lembrei. Havia um filme que assistíamos quando crianças, que não me lembro o nome, mas duas crianças, uma garota e um garoto, se apaixonavam e davam o seu primeiro, mas um deles morre. Lembro que quando assistimos, eu chorei e ele sorriu. Disse que eu não me preocupasse porque era filme.

Hoje, quando ele me sorriu, eu quis chorar. Não chorei. Apertei forte a mão dele, dei um sorriso para a mãe dele, que sorriu de volta. Acho que não se lembra. Fui para e fui cozinhar. Minha mãe sabe que quando eu cozinho, estou resolvendo meus problemas internos. Então me deixa. Meu pai também. Chegou e ficou feliz de me ver cozinhando, mas deu um sorriso de canto, não entendendo o que havia de errado. Sentaram-se de frente comigo.

Comemos em silêncio, nada passa despercebido ao meu pai, que veio me perguntar o que havia acontecido. Eu não disse, mas ele sabia. Todos eles sabiam que o vizinho havia voltado. Na infância, pouco dei importância para o fato de ele ter ido embora, de nós termos sido censurados, mas com o tempo, toda ferida que não cicatriza, infecciona. Meu carinho por ele aumentou e depois foi enterrado. Não morreu. Fomos forçados a tudo. Talvez a maior força tenha sido gerada por mim.

Quatorze anos e no banheiro da escola e ele disse que me amava. Disse olhando nos meus olhos, suas mãos segurando as minhas. Mas eu não quis. Não tentou me beijar, não tentou tirar minha roupa, não nos masturbamos como era comum entre os garotos. Disse que me amava. E eu disse que sentia muito. Na aula de artes aprendíamos sobre perspectiva cônica e imaginei como ela aquele meu não influiria nas perspectivas de nossas vidas e nossas famílias.

Um bairro simples, não somos pobres, mas somos comuns, humildes. Não houve jamais um casal gay no bairro. Dois homens se beijando seria um insulto, uma aberração. Tudo que é diferente e desestabiliza a ordem comum das coisas, cria o caos e a periferia é calma, ela tem seus códigos que não devem ser violados. Por um tempo eu imaginei como seria nós dois morando juntos, nos amando e frequentando os estabelecimentos aqui do bairro. Iríamos ao supermercado fazer as compras do mês, às quintas, iríamos à feira para o pastel, a garapa e a verdura. Seríamos, quando velhos, assíduos no Bar do Zé, falando de política, dos direitos violados. Pediríamos um Para Tudo e piscaríamos para os velhos dali, porque a noite seria boa.

Mas também via toda essa cena inversa. Iríamos à feira e seríamos escorraçados, não haveria aceitação. Dois velhos veados num bar, junto dos machos, incapaz. Via-nos apanhando, morrendo. Sangue. Uma censura amena e forte como um dique que segura a água do rio. Com os anos fui acostumando com a ideia de que não dava, não era certo, não podíamos. Éramos sujos.

Lavando o carro na frente de casa, esponja grande na mão, o sabão de coco esparramado pela lataria, eu fiquei boa parte da tarde. Ele saiu e veio conversar comigo. Que lindo era. Tinha os braços fortes, era mais alto do que eu. Vestia uma bermuda e chinelos, um Deus que reluzia a luz do sol. Eu lavava o carro e fingia dar pouca atenção a ele. Disse-me da experiência fora do país, de como foram as viagens, as festas, as mulheres e de que havia voltado há 5 anos. Os dois últimos itens me doeram mais profundamente.

Ele conseguira transpor a barreira. Ficava com mulheres. Ele era um homem, era um perfeito homem, que saíra dali, fez a vida, voltou e agora é o filho prodígio. Tem as mulheres, como todo homem deve ter. Segura as suas cabras que meu bode está solto, era o que eu ouvia de algumas mulheres sobre seus filhos. Minha mãe nunca disse isso sobre mim, nunca quis.

Voltou há 5 anos e não veio me resgatar. Eu sorri tão tristemente que ele percebeu. Mas não entendeu. Talvez para ele tenha sido coisa de criança. E pode ser que tenha sido mesmo. Às vezes conferimos valor demasiado às coisas que vivemos e nem sempre bate com o valor real. A fantasia é tão mais leve, tão mais bela. Somos tão felizes de olhos fechados porque as imperfeições se perdem com a visão turva. 

Ele disse que entraria, o almoço estava quase pronto. Eu disse que tudo bem. E então ele fez a coisa mais máscula possível. Chegou perto de mim, me abraçou e me deu um beijo no rosto. Senti sua barba grossa, feita há no máximo dois dias. Os pelos me cutucaram e eu enrubesci de constrangimento. Os vizinhos estariam olhando? Eu seria mais uma vez piada da rua? Já via todos nós tendo que brigar pela própria paz. Ele me soltou, piscou para mim e disse que era bom demais me rever.

Esqueci o carro, deixei como estava e coloquei na garagem. Sonhei com ele nos dias seguintes e tive febres fortes. Contorcia-me na cama, meus pais chamaram médicos, dois, e nada resolvia. Via ele nos meus sonhos e em todos eles nada acontecia. Ele me abraçava, me beijava. Na boca. Ele escorregava a barba por todo meu rosto e me beijava a boca. Abraçava-me inteiro. Sentia-me abraçado nos braços, nos pés, no pau. Eu o sentia inteiro em mim.

Recobrei a consciência e fizeram festa. Mas ele já havia partido para a capital. Estava noivo. Uma linda garota loira, de olhos verdes, era garota-propaganda de uma marca de lingeries. Sortudo. Pegou a mulher mais linda. Eu poderia ter sido seu homem, seu tudo. Sua vida. Faria comerciais de cueca, se ele quisesse, ficaria nu, tiraria fotos inusitadas. Caras sérias, boca pouco aberta indicando uma sensualidade para qualquer foto. Mas ele a preferiu. Sorte a dela. E dele.

O bairro todo iluminado, luzes nos postes. Sábado e festa junina. Subi no pau de sebo e peguei cem reais. Dei para minha mãe. Ela riu e agradeceu. Devolveu-me dizendo que era para eu sair com alguma garota, ir a um cinema, viver. Não aceitei de volta. Fui perto da fogueira e o fogo queimava as madeiras. Quis atirar-me ali, fazer as coisas acontecerem como deviam. Morrer talvez fosse a melhor resposta para tudo, mas seria egoísmo, também. Meu pai e o pai de meu vizinho soltaram um balão, queimou até virar cinza no céu. Tudo estava em paz na periferia. Em breve eu me casaria com uma morena de parar trânsito. Seria feliz. Teria filhos e envelhecia bebendo uma boa pinga no Bar do Zé.





[Ouvindo: Gal Costa - Hotel de Estrelas]

Um comentário:

  1. Confesso que eu estava indo dormir quando vir ler o texto no seu blog e me deu uma preguiça de ler... Mas você escreve tão bem, tão certinho, a história é sempre tão interessante que simplesmente flui!
    Fiquei com uma curiosidade de saber se a história é ou não real....

    E porra, para de querer mudar o que se é e case-se logo com um moreno forte e gostoso... Se quiser te trago no bar do zé, que tem aqui em Campinas que garanto que tu será bem aceito ! haha

    beijos

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